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Traduzido por: Livro Editado em Português do Brasil
Páginas: 87
Ano de edição: 1998
Peso: 160 g
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A Hora da Estrela é daqueles livros que se leem numa sentada. Macabéa chega ao Rio de Janeiro onde leva uma vida miserável, típica dos emigrantes nordestinos: sem educação formal ou qualificação profissional. Na “cidade grande”, vai morar num cômodo que divide com mais seis colegas. Todas buscam a ascensão social. Apaixona-se por Olímpico de Jesus, que a troca por Glória, colega de quarto, devido ao conflito dos valores e cultura diferentes. A autora escreveu este livro pouco antes de sua morte. Inexplicavelmente o narrador é uma voz masculina. Os dramas, ilusões, angústias e sofrimentos de Macabéa permeiam toda a história. O final, embora não seja surpreendente, emociona o leitor. Livro e leitura muito bons.
A história de Macabéa, moça nova vinda do nordeste para o Rio de Janeiro, onde leva uma vida muito simples. Apaixona-se por Olímpico de Jesus que a troca por Glória, sua colega de trabalho. Macabéa tem sonhos de vida, tão simplórios quanto ela. Estava com problemas de saúde e, por aconselhamento de Gloria, foi consultar uma cartomante que fez previsões sobre seu futuro, onde um estrangeiro – louro e bonito – atravessaria sua vida.
Pareço conhecer nos menores detalhes essa nordestina, pois se vivo com ela. E como muito adivinhei a seu respeito, ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra. Quando eu era menino li a história de um velho que estava com medo de atravessar um rio. E foi quando apareceu um homem jovem que também queria passar para a outra margem. O velho aproveitou e disse:
- Me leva também? Eu bem montado nos teus ombros?
O moço consentiu e passada a travessia avisou-lhe: - Já chegamos, agora pode descer.
Mas aí o velho respondeu muito sonso e sabido:
- Ah, essa não! É tão bom estar aqui montado como estou que nunca mais vou sair de você!
Pois a datilógrafa não quer sair dos meus ombros. Logo eu que constato que a pobreza é feia e promíscua. Por isso não sei se minha história vai ser - ser o quê? Não sei de nada, ainda não me animei a escrevê-Ia. Terá acontecimentos? Terá. Mas quais? Também não sei. Não estou tentando criar em vós uma expectativa aflita e voraz: é que realmente não sei o que me espera, tenho um personagem buliçoso nas mãos e que me escapa a cada instante querendo que eu o recupere.
Esqueci de dizer que tudo o que estou agora escrevendo é acompanhado pelo rufar enfático de um tambor batido por um soldado. No instante mesmo em que eu começar a história - de súbito cessará o tambor.
Vejo a nordestina se olhando ao espelho e - um rufar de tambor - no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos. Não há dúvida que ela é uma pessoa física. E adianto um fato: trata-se de moça que nunca se viu nua porque tinha vergonha. Vergonha por pudor ou por ser feia? Pergunto-me também como é que eu vou cair de quatro em fatos e fatos. É que de repente o figurativo me fascinou: crio a ação humana e estremeço. Também quero o figurativo assim como um pintor que só pintasse cores abstratas quisesse mostrar que o fazia por gosto, e não por não saber desenhar. Para desenhar a moça tenho que me domar e para poder captar sua alma tenho que me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado pois faz calor neste cubículo onde me tranquei e de onde tenho a veleidade de querer ver o mundo. Também tive que me abster de sexo e de futebol. Sem falar que não entro em contacto com ninguém. Voltarei algum dia à minha vida anterior? Duvido muito. Vejo agora que esqueci de dizer que por enquanto nada leio para não contaminar com luxos a simplicidade de minha linguagem. Pois como eu disse a palavra tem que se parecer com a palavra, instrumento meu. Ou não sou um escritor? Na verdade sou mais ator porque, com apenas um modo de pontuar, faço malabarismos de entonação, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto.
Autor:
Veículo: http://www.correioims.com.br/carta/clarice-lispector-parece-uma-arvore/?utm_campaign=a_nexo_20160802&utm_medium=email&utm_source=RD+Station
Fonte: Correio IMS Instituto Moreira Sales
De: Fernando Sabino Para: Clarice Lispector Depois de se formar em direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1946, Fernando Sabino viajou para Nova York, onde ficou dois anos como funcionário do escritório comercial do Brasil e do consulado brasileiro. De Nova York, escreve esta carta à sua amiga Clarice Lispector, que morava em Berna, Suíça, acompanhando o marido em sua carreira diplomática. Nova York, 10 de junho de 1946 Clarice, Esta é a quarta carta que inicio para responder a sua. A primeira eu deixei no Brasil, só trouxe a primeira página, que vai junto. A segunda eu rasguei. A terceira eu não acabei, vai junto também. Hoje recebi uma carta do Paulo [Mendes Campos], dizendo que não tinha mandado até agora a resposta dele. Positivamente somos uns cachorros irremediáveis. Você por favor não ligue para isso não. Pode ter certeza de que não te esquecemos. Ainda ontem me lembrei muito de você, porque um americano me perguntou se o meu relógio era suíço. A Suíça existe mesmo? Serão daí mesmo os queijos suíços? Me escreva, Clarice, sou tão cínico que te peço para me escrever, me responder com a pontualidade e a presteza que não tenho, contando tudo, suas aventuras e desventuras nessa poética Seminarstrasse. [1] Do Brasil não posso te contar nada, senão o que o Paulo me contou hoje na carta dele: que o Pajé[2] tem tomado aos domingos porres gigantescos, colossais. Que a sensação de um libertino ao acordar na segunda-feira é a pior coisa do mundo. Que houve um comício no largo da Carioca onde choveu bala sobre os comunistas, mataram um estudante. [3] Que o Rubem Braga vai indo bem. Que num chá que os acadêmicos ofereceram a outros acadêmicos ninguém perguntou por você. Daqui de Nova York não posso te contar nada além do que você calcula. Outro dia abri um livro do Erico Verissimo sobre literatura brasileira escrito aqui,[4] mesmo na página em que ele fazia uma referência a você. Tenho sentido muita falta de seu livro que deixei no Brasil,[5] para plagiar uns pedaços quando vou escrever o meu. Tenho tido muitas dores de cabeça, tenho ouvido histórias de espantar. Uma: o homem mais gordo do mundo fez um regime para emagrecer, emagreceu cinquenta quilos e morreu. Tenho dado muitas gafes aqui com o meu pobre inglês. Uma: entrei num drugstore para comprar remédio para dor de cabeça e acabei levando uma loção para cabelos. Tenho tido muitos pesadelos. Um: ontem sonhei com um rato encravado na parede, guinchando de dor. Tenho reformado muitos conceitos, por exemplo: o Jayme Ovalle não é tão chato como eu imaginava. Tenho imitado Otávio de Faria em tudo o que ele não faz. Tenho feito descobertas importantes, por exemplo: o pecado é simplesmente tudo o que Cristo não fez. Tenho conhecido sujeitos famosos, por exemplo: Duke Ellington. Tenho tido muito pouco dinheiro. Tenho tido muitas oportunidades de ficar calado. Tenho tido muita decepção com os Correios. Tenho tido cansaço, saudade e calma. Tenho bebido muito, muito, muito. Tenho lido os suplementos dominicais. Tenho tido vontade de voltar. Tenho escrito muitas cartas para você. Tenho dormido muito pouco. Tenho xingado muito o Getúlio. Tenho tido muito medo de morrer. Tenho faltado muita missa aos domingos. Tenho tido muita pena de Helena ter se casado comigo. Tenho tido dor de dente. Tenho certeza que não volto mais. Tenho contado muito nos dedos. Tenho franzido muito o sobrolho. Tenho falado muito com os meus botões. Tenho tido muita vontade de brincar. Tenho feito muitas manifestações de apreço ao senhor diretor.[6] Clarice, estou perdido no meio de tantos particípios passados. Estou com vontade de fumar e o meu cigarro acabou, estou com vontade de namorar de tarde numa pracinha cheia de árvores, estou com muitas saudades de mamãe. Aqui na minha frente, na minha mesa do escritório, tem uma pilha de 1834 fichas me esperando para serem conferidas. São tão simpáticas, as fichinhas. Me esperam e sorriem burocraticamente: conhecem o meu triste fim. Sorrio também para elas, digo que esperem: agora estou indo para Seminarstrasse. Só de pensar que você estará lendo esta carta muitos dias depois de ter sido escrita me dá vontade de não mandar. Mas mando, isso é uma desonestidade. Você nos escreveu há um mês. Juro que não faço mais isso, foi só da primeira vez, agora não faço mais. Me escreva, que responderei imediatamente. Como vai indo o seu livro? O que é que você faz às três horas da tarde? Quero saber tudo, tudo. Você tem recebido notícias do Brasil? Alguém mais escreveu sobre o seu livro? É verdade que a Suíça é muito branca? Você mora numa casa de dois andares ou de um só? Tem cortina na janela? Ou ainda está num hotel? Oh, meu Deus, Seminarstrasse será simplesmente um hotel? Qual é o cigarro que você está fumando agora? Pipocas, Fernando![7] Clarice, em Belém eu procurei no hotel uma carta do Mário [de Andrade] para você, não encontrei. Eu delirava se pudesse te dar essa alegria. Tinha certeza de encontrar e não encontrei. Manuel Bandeira é um sujeito muito triste, Clarice. Também não me despedi de muita gente. Também me esqueci de muitas coisas no Brasil. Quando eu era menino, chupei uma vez tanta manga verde que fiquei doente de cama por três dias, faltei ao grupo, só vendo. Eu tinha um coelhinho chamado Pastoff. Um dia meu pai pegou o coelho e deu para um amigo, fiquei triste mesmo, chorei muito, papai foi muito mau. A coisa que mais gostava era no tempo de frio sair fumacinha da minha boca. Pipocas, Fernando! Clarice Lispector é uma coisa riscadinha sozinha num canto, esperando, esperando. Clarice Lispector só toma café com leite. Clarice Lispector saiu correndo no vento na chuva, molhou o vestido, perdeu o chapéu. Clarice Lispector sabe rir e chorar ao mesmo tempo, vocês já viram? Clarice Lispector é engraçada! Ela parece uma árvore. Todas as vezes que ela atravessa a rua bate uma ventania, um automóvel vem, passa por cima dela, e ela morre. Me escreva uma carta de sete páginas, Clarice. Fernando Clarice Lispector. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, pp. 82-85. [1] N.S.: Seminarstrasse, número 30, sede da Legação Brasileira em Berna, Suíça, onde trabalhava o marido de Clarice. [2] N.S.: Pajé era como Otto Lara Resende era chamado no grupo dos quatro mineiros, composto por ele, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino. [3] N.S.: No dia 26 de maio de 1946, a polícia reprimiu um comício de Imprensa Popular do Partido Comunista Brasileiro, no largo da Carioca. A violência resultou na morte da estudante Zélia Magalhães, de 22 anos, militante do Partido. [4] N.S.: Brazilian Literature: An Outline. Nova York: MacMillan, 1945. Reúne as conferências de Erico Verissimo do período em que lecionou na Universidade da Califórnia. Publicado no Brasil com o título Breve história da literatura brasileira pela Editora Globo em 1995. [5] N.S.: Trata-se possivelmente de Perto do coração selvagem (1943). [6] N.S.: Alusão à primeira estrofe de “Poética”, de Manuel Bandeira, que se encontra no livro Libertinagem (1930): “Estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado/ Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. Diretor.” [7] N.A.: Referência à sua predileção por pipocas, que a levou um dia a me assustar com esta incontida exclamação de alegria infantil ao passarmos no meu carro em Copacabana diante de um pipoqueiro.
Após a leitura de “Clarice, Uma Biografia” de Benjamim Moser me dei conta de que haviam sumido da Bibliomafrateca dois ou tres livros de Clarice´, como tantos outros livros bons. Repete-se o axioma "livro bom some", que deu origem à Bibliomafrateca, depois Livronautas. Busquei nos sebos “A Hora da Estrela” e “Água Viva” que reli com muito gosto.
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