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Editora: Fundação Perseu Abramo
Traduzido por: Livro Editado em Português do Brasil
Páginas: 415
Ano de edição: 1999
Peso: 975 g
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Coletânea normalmente é a mais pura enganação, feita apenas para ganhar dinheiro, sem nenhum compromisso com a qualidade ou ainda com os direitos autorais. Bela surpresa, entretanto, é Com Palmos Medida. Surpresa pela qualidade dos textos e dos autores selecionados. São mais de 60 textos de diferentes autores, organizada pelo Flávio Aguiar, que é professor de literatura brasileira. Trabalho e conflito da propriedade da terra é o cerne do livro. Somente um grande conhecedor de literatura poderia extrair do texto de tantos autores as relações de trabalho referidas à terra. Na sucessão dos tempos conta-se a história de homens espoliados, privados da terra e oprimidos pela prepotência, pelo poder, pela política, pelos governos e pelo velho e bom dinheiro. O organizador escolheu para título de sua obra, um pedaço do verso de João Cabral de Melo Neto: ....Esta cova em que estás, com palmos medida, .... O verso inicial dá dimensão ao livro. A sua temática tangencia a história brasileira e espelha a ocupação da terra desde a invasão dos europeus, em 1500 até os dias da covarde tomada do poder, pelos militares em 1964. Pela sua beleza e dimensão humana o livro foi classificado como de história do Brasil, e não apenas, como do gênero "literatura brasileira". Excelente em qualquer classificação ou gênero.
História da terra no Brasil, em sete períodos: Colonial; século das luzes; consolidação do império e suas crises; primeiros tempos da república; os modernistas; o pós-guerra e a ditadura militar; o declínio.
Tomar Um Rumo.
Por Raquel de Queiroz.
Ô meu boi! Ô lá, meu boi, ê!... Meu boi manso! Ô ê! Ê... Ê... Ê... Encostado ao mourão da porteira de paus corridos, o vaqueiro das Aroeiras aboiava dolorosamente, vendo o gado sair, um a um, do curral. A junta de bois mansos passou devagarinho. O velho touro da fazenda saiu, arrogante. Garrotes magros, de grandes barrigas, empurravam as vacas de cria, atropelando-se. Até que a derradeira rês. A Flor do Pasto, fechando a marcha, também transpôs a porteira e passou junto de Chico Bento que lhe afagou com a mão a velha anca rosilha, num gesto de carinho e despedida. Da janela da cozinha, as mulheres assistiam à cena. Choravam silenciosamente, enxugando os olhos vermelhos na beira dos casacos ou no rebordo das mangas. Saída a última rês, Chico Bento bateu os paus na porteira e foi caminhando, atrás do lento caminhar do gado, que marchava à toa, parando às vezes, e pondo no pasto seco os olhos tristes, como numa agudeza de desesperança. Algumas reses, sem ir mais longe, começavam a babujar a poeira do panasco que ainda palhetava o chão nas clareiras da caatinga. Outras, mais tenazes, seguiam cabisbaixas, na mesma marcha pensativa, a cauda abanando lentamente as ancas descarnadas. Chico Bento parou. Alongou os olhos pelo horizonte cinzento. O pasto, as várzeas, a caatinga, o marmeleiral esquelético, era tudo de um cinzento de borralho. O próprio leito das lagoas vidrara-se em torrões de lama ressequida, cortada aqui e além por alguma pacavira defunta que retorcia as folhas empapeladas. Depois olhou um garotinho magro que, bem pertinho, mastigava sem ânimo uma vergôntea estorricada. E ao dar as costas, rumo a casa, de cabeça curvada como sob o peso do chapéu de couro, sentindo nos olhos secos pela poeira e pelo sol uma frescura desacostumada e um penoso arquejar no peito largo, murmurou desoladamente: - Ô sorte, meu Deus! Comer cinza até cair morto de fome! A velha casa de taipa negrejava ao solo telhado de jirau. Na latada, coberta de folhas secas, o cachorro cochilava ao calor do mormaço. Chico Bento entrou, no mesmo passo lento, a modo que curvado sob a cruz de remendos que ressaltava vivamente, como um agouro, nas costas desbotadas da velha blusa de mescla. Foi direito a um caritó, ao canto da sala da frente, e tirou de sob uma lamparina, cuja luz enegrecera a parede com uma projeção comprida de fumaça, uma carta dobrada. E como quem vai reler uma sentença que executou, para se livrar da responsabilidade e do remorso, ele penosamente mais uma vez decifrou a letra do administrador, sobrinho de dona Maroca: "Minha tia resolveu que não chovendo até o dia de São José você abra as porteiras e solte o gado. É melhor sofrer logo o prejuízo do que andar gastando dinheiro à toa em rama e caroço, pra não ter resultado. Você pode tomar um rumo ou, se quiser, fique nas Aroeiras, mas sem serviço na fazenda. Sem mais, do compadre amigo..." Longamente ficou o vaqueiro olhando aquelas letras que exprimiam tanta desgraça. Depois dobrou o papel, tornou a pô-lo no lugar, puxando o braço vivamente como se se libertasse, livrando-se do temor supersticioso que lhe travava as mãos, porque uma carta daquelas lhe parecia coisa amaldiçoada. Lá fora, um menino fazia o cachorro ganir, cutucando-o com uma varinha. E gritava entre risadas: - Diabo ruim! Pisca! Limpa-Trilho! Pisca! O cachorro pulou. E menino e cão saíram correndo pelo terreiro varrido, levantando redemoinhos de poeira. Chico Bento, deixando que explodisse na brutalidade do berro a opressão que o angustiava desde manhãzinha, assomou à janela, congesto, a mão enfurecida cortando o ar: - Limpa-Trilho! Josias! Pra dentro, seus sem-vergonha! Quando Vicente foi chegando em casa, de volta do Logradouro, a família toda cercava uma ovelha de lã avermelhada pela poeira e eriçada de garranchinhos e folhas secas, que estirada no chão, toda entanguida, tremia, com as pernas duras e os olhos vidrados: - Salsa, não foi? Dona Idalina levantou o corpo curvado, gesticulando com o vidro de arnica: - Mas, menino, por que você não faz a criação pastar fora do pátio? Não sabe que lá só tem é salsa? Esta bichinha desde de manhã deve estar assim, junto do riacho. E só agora foi que o compadre João achou e trouxe... A marrã se esticava mais, querendo morrer, com os olhos sanguinolentos girando, esbugalhados. Vicente olhava, de braços cruzados, vendo a pobrezinha morrer sem resistência, só naquela aflição, naquela agonia de quem quer lurar e não pode. Um momento, e a marrã inteiriçou-se mais, procurando erguer a cabeça num esforço penoso, mas depois a abateu pesadamente no ladrilho. Alice, a filha mais nova da casa, que se ajoelhara no chão, gritou: - Morreu! Vicente afastou-se e chamou o João Marreca, que de longe a cavalo na cerca do curral, assistia à cena: - Compadre João, leve para o curral de lá, e tire o couro. Alice correu para o irmão e agarrou-lhe o braço, pedindo: - Depois você manda curtir pra mim, não manda, Cente? A bichinha tão bonitinha, tão lanzuda! Dá pra fazer um tapete, ou uma manta de sela! Vicente riu-se, deu-lhe um tapa leve no rosto: - Que manta! Quem já viu se fazer manta de couro de ovelha!? No poente avermelhado, um vulto preto se desenhou. Depois, o cavalo e o cavaleiro foram se destacando na sombra escura que avançava. Ao chouro duro do cavalo, o cavaleiro subia e descia na sela. Desengonçadamente, numa indiferença de macaco pensativo que se agacha num encontro de galhos e ali fica deixando que o vento o empurre e sacuda à vontade. Era o Chico Bento. O cavalo parou debaixo do pau-branco sem que fazia as vezes de sombra. O dono apeou, com a mesma indolência desajeitada, tirou o cabresto de baixo da capa da sela e amarrou o animal no tronco. Agora, ao Chico Bento, como único recurso, só restava arribar.. Sem legume, sem serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome, enquanto a seca durasse. Depois, o mundo é grande e no Amazonas sempre há borracha.... Alta noite, na camarinha fechada que uma lamparina moribunda alumiava mal, combinou com a mulher o plano de partida. Ela ouvia chorando, enxugando na varanda encarnada da rede, os olhos cegos de lágrimas. Chico Bento, na confiança do seu sonho, procurou animá-la, contando-lhe os mil casos de retirantes enriquecidos no Norte. A voz lenta e cansada vibrava, erguia-se, parecia outra, abarcando projetos e ambições. E a imaginação esperançosa aplanava as estradas difíceis, esquecia saudades, fome e angústias, penetrava na sombra verde do Amazonas, vencia a natureza bruta, dominava as feras e as visagens, fazia dele rico e vencedor. Cordulina ouvia, e abria o coração àquela esperança; mas correndo os olhos pelas paredes de taipa, pelo canto onde na redinha remendada o filho pequeno dormia, novamente sentiu um aperto de saudade, e lastimou-se: - Mas, Chico, eu tenho tanta pena da minha barraquinha! Onde é que a gente vai viver, por esse mundão de meu Deus? A voz dolente do vaqueiro novamente se ergueu em consolações e promessas: - Em todo pé de pau há um galho mode a gente armar a tipóia... E com umas noites assim limpas até dá vontade de se dormir no tempo... Se chovesse, quer de noite, quer de dia, tinha carecido se ganhar o mundo atrás de um gancho? Cordulina baixava a cabeça. Chico Bento continuou a falar. O animal trocado com Vicente chegava de manhãzinha. Iria nele até o Quixadá, ver se arranjava as passagens de graça que o governo estava dando. Recebendo o dinheiro do Zacarias da Feira, se desfazendo da burra e matando as criaçõezinhas que restavam, para comerem em caminho, que é que faltava? Nem trem, nem comida, nem dinheiro... Cordulina levantou-se para balançar o menino que acordou chorando. Era madrugada. Passarinhos desafinados, no pé de turco espinhento do terreiro, cantavam espaçadamente. A barra do dia foi avermelhando o céu. Os golinhas continuaram a cantar com mais força. A mulher enfiou a saia e o casaco e foi cuidar no café. Chico Bento ficou só. Tinha-se deixado estar na rede, sentado, as mãos pendentes, descansando os pulsos nos joelhos, o pensamento vagando numa confusa visão de boa ventura e fortuna. Pouco a pouco, porém, com a luz do dia que entrava pelas frinchas da camarinha, a névoa otimista foi-se adelgaçando, e se foi sumindo a onda aquecedora de entusiasmo; e do projeto ambicioso só lhe ficou, triste e aguda, a melancolia do desterro próximo. Sonolenta, ainda, a meninada se levantava, esfregando os olhos, espreguiçando-se em bocejos rasgados, em longas distensões que lhes salientavam o relevo das costelas. O mais velho saiu logo para o curral e, passando pela porta da camarinha, gritou: - Papai! Já vou levar o gado do homem! Chico Bento meteu os pés, estremunhado como quem acorda: - Ah, sim! Tá na hora... A manhã era fria, quase nevoenta. O meninote abriu a porteira e tangeu as reses, que saíram devagarinho. Levantou o chapéu e a mão, tomando a bênção. O pai mastigou um "Deus te acompanhe" e ficou vendo-o ir-se, assoviando, ligeiro, pelo trilho pedregoso. A burra da troca não era bem um babau velho, como Chico Bento vinha dizendo em caminho, na tarde do negócio. Era nova, coiceira, e ainda carnuda. O menino vinha montado em osso, quase na garupa, num galope baixo e sacudido. Chico Bento recebeu-a, examinou-lhe as manchas do pêlo, para ver se era sinal ou pisadura mal sarada. Bateu-lhe no lombo e o animal encolheu-se. Retificou o nó do cabresto, e, voltando-se para o menino, já quase dentro de casa: - Venha tomar seu café e depois sele a burra, que eu careço de ir no Quixadá. Mas foi em vão que Chico Bento contou ao homem das passagens a sua necessidade de se transportar a Fortaleza com a família. Só ele, a mulher, a cunhada e cinco filhos pequenos. O homem não atendia. - Não é possível. Só se você esperar um mês. Todas as passagens que eu tenho ordem de dar já estão cedidas. Por que não vai por terra? - Mas meu senhor, veja que ir por terra, com esse magote de meninos, é uma morte! O homem sacudiu os ombros: - Que morte! Agora é que retirante tem esses luxos... No 77 não teve trem para nenhum. É você dar um jeito, que, passagens, não pode ser... Chico Bento foi saindo. Na porta, o homem ainda o consolou: - Pois se quiser esperar, talvez se arranje mais tarde. Imagine que tive de ceder cinqüenta passagens ao Matias Paroara, que anda agenciando rapazes solteiros para o Acre! Na loja do Zacarias, enquanto matava o bicho, o vaqueiro desabafou a raiva: - Desgraçado! Quando acaba, andam espalhando que o governo ajuda os pobres... Não ajuda nem a morrer! O Zacarias segredou: - Ajudar, o governo ajuda. O preposto é que é um ratuíno... Anda vendendo as passagens a quem der mais... Os olhos do vaqueiro luziram: - Por isso é que ele me disse que tinha cedido cinqüenta passagens ao Matias Paroara!.. . - Boca de ceder! Cedeu, mas foi mão pra lá, mão pra cá... O Paroara me disse que pouco faltou pro custo da tarifa... Quase não deu interesse... Chico Bento cuspiu com o ardor do mata-bicho: - Cambada ladrona! Cordulina remendava uns panos, quando o vaqueiro chegou. Pelo jeito dele. Conheceu logo que o negócio tinha ido mal. Furioso, cuspindo, descompunha a burra enquanto tirava os arreios: - Diaba do chomo duro como o cão! Pior que o alazão velho da fazenda! A mulher levantou-se, afastando um menino que lhe repuxava as abas do casaco, pedindo mama. Gritou para a irmã, que estava lá na cozinha: - Ô Mocinha! Vê se tu dás um pirão de peixe a este menino que anda em tempo de me comer os peitos! Depois, indo para o marido: - Como se foi, Chico? Trouxe o dinheiro e as passagens? - Que passagens! Tem de ir tudo é por terra, feito animal! Nesta desgraça quem é que arranja nada! Deus só nasceu pros ricos! Cordulina viu pelo bafo do marido e pela fúria das apóstrofes, tão desacostumadas no seu natural sossegado, que ele tinha bebido demais. E interpelou-o: - Mas, Chico, pra que é que você toma, quando vai no Quixadá? Toda vez que vem de lá é nesse jeito! - Besteira, mulher!... Tomei nada! Matei o bicho! A vontade que eu tinha era estar mesmo bebinho, pra me esquecer de tudo quanto é desgraça!...
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Comprei o livro por se tratar de "história" da terra, vista através da literatura, pelo discurso de importantíssimos autores, entre eles: Afonso Arinos, Carlos Drummond, Castro Alves, D. Pedro Casaldáglia, Érico Veríssimo, Euclides da Cunha, Darcy Ribeiro, João Ubaldo Ribeiro, José Lins do Rego, Pero Vaz de Caminha e muitos outros.
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