Marcio Mafra
25/04/2020 às 00:00
Brasília - DF
Que sufoco louco
A gaúcha Ieda Maria Vargas havia garantido que jamais se esqueceria da gentil recepção oferecida pelo presidente e pela primeira-dama logo após ela ter vencido o concurso de Miss Universo 1963. Famosa em todo o mundo, e mostrando mais fibra e caráter que vários homens públicos.
Ieda teve a coragem de ir ao Uruguai convidar pessoalmente Jango e Maria Thereza para serem padrinhos de seu casamento com José Carlos Athanázio. O convite foi aceito, porém João Vicente substituiria o pai.
Abril de 1968. Maria Thereza voltava ao Brasil. A reação do governo militar sobre a liberação ou não de sua entrada no país continuava imprevisível. Para festas de casamento, pelo jeito, não haveria objeção, mas seria bom que ela continuasse atenta. Após cinco anos de exílio, sua popularidade se mantinha alta. A revista Manchete de 13 de abril destacou que Maria Thereza, com João Vicente, "muito crescido e bonito", ao seu lado, foi aplaudida à entrada da Igreja de São José, em Porto Alegre. Aos repórteres, aproveitou para fazer uma provocação pelo que aconteceu durante o casamento do irmão. Maria Thereza não esquecia: "É sempre bom, no exílio, receber atenção de amigos ( ... )
Nestas horas, uma palavra toma contornos excepcionais. Nem todos cultivam a amizade dos que não têm poder." A reportagem revelava que ela permaneceria por apenas quarenta 40 horas, "anunciadas ao desembarcar" (sim, fora novamente interrogada). Questionada pelos Jornalistas sobre a volta definitiva ao Brasil, Maria Thereza foi direta:
"Meu marido decidirá a oportunidade. Enquanto isso, cultivamos nossas saudades."
Na bolsa de apostas das redações do país, era barbada que Ieda Maria Vargas, vestida de noiva, seria a capa da edição da Manchete. Não foi.
Naquela semana, um fato fez o Brasil tremer: milhares de estudantes saíram às ruas do Rio de Janeiro para sepultar o jovem Edson Luís, morto em um confronto entre estudantes e a Polícia Militar. Era essa a foto da capa. Outros catorze flagrantes ilustravam a reportagem. Uma delas mostrava dezenas de cartazes ao lado do corpo de Edson Luís: "Eis a democracia podre"; "Os assassinos pagarão pelos seus crimes! Custe o que custar!"; "Aqui está o corpo de um estudante morto pela ditadura". Na sequência, a revista mostrava a série de manifestações estudantis que tomava conta do mundo. Suécia, Bélgica, Estados Unidos, Alemanha, Tchecoslováquia, Itália, Inglaterra e, claro, a França, cujos movimentos se tornariam símbolo da onda que escancarava o terror para a classe média brasileira. Em coro, a multidão gritava: "Morreu um estudante. Podia ser seu filho!"
A ditadura estava de olho. Nos estudantes, no país e em Iango. No Brasil, o presidente Costa e Silva, que substituíra Castello Branco, não daria sossego às ações da Frente Ampla. Dedicou-se a montar uma escalada para destruí-la de vez. Impediria Lacerda de aparecer na TV. Ameaçaria Juscelino, que já tivera de prestar depoimentos em vários inquéritos, de ser mais uma vez convocado para depor. Por fim, no dia 5 de abril de 1968, o ministro Gama e Silva simplesmente baixou a Instrução nº 117, que proibia a divulgação de notícias e declarações de atividades da Frente Ampla. Jango ficaria arrasado. Acabava sua esperança de voltar a fazer política.
A sucessão de notícias ruins parecia um aviso. Ele precisava se cuidar. Em meados de 1968, sofreu um novo distúrbio cardíaco.
Jango quis então que Euryclides Zerbini o examinasse. Sua rede de amigos levou o convite até o cirurgião. Zerbini chamou o colega Siguemituzo Arie para ajudá-lo. Disse a ele que viajariam ao Uruguai para realizar uma palestra. Somente quando desembarcou em Montevidéu, Arie soube o que iriam fazer. Apesar desses cuidados para manter a discrição, Zerbini chegou ao Uruguai cercado pela imprensa local.
Em maio, o cardiologista havia realizado o primeiro transplante de coração da América Latina, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Zerbini e Arie foram do aeroporto para o hospital. Devidamente vigiados pelo serviço secreto brasileiro, os médicos brasileiros levavam um equipamento que não existia no Uruguai. Mais que uma conversa - nada além do que Jango esperava de qualquer médico -, Zerbini desejava realizar uma série de exames no seu difícil paciente. Seria feita uma cineangiocoronariografia, um procedimento invasivo que verificava o funcionamento das válvulas e do músculo cardíaco, detectando se havia obstrução nas artérias.
Depois do exame em Iango, o equipamento seria doado e instalado definitivamente no Ospedale italiano Umberto I, que ficava próximo ao Parque Batlle.
Para a realização do procedimento médico, Zerbini se acertou com a administração do Umberto I. Porém, seria necessário que o paciente concordasse em, primeiramente, entrar em um hospital. Foi preciso muito esforço de Maria Thereza, João Vicente e Denize para convencê-lo.
O pavor de Jango resultou em um desmaio logo após ter feito um exame de sangue antes do procedimento. Se houvesse necessidade, Zerbini e Arie estavam preparados para realizar uma intervenção cirúrgica. O resultado da cineangiocoronariografia revelou que Jango sofrera uma cardiopatia isquêmica (diminuição do fornecimento de sangue para o coração, provocada pelo entupimento das artérias). Zerbini indicou a Jango a clínica do Hospital Cardio-thoracique et Vasculaire Louis Pradel, em Lyon, onde seria atendido por um dos melhores cardiologistas do mundo, o médico francês Roger Froment.
Zerbini passou as orientações que Jango estava cansado de ouvir. Deveria parar de fumar e de beber, mudar a alimentação e seu ritmo sedentário, além de trabalhar menos. Receitou-lhe um remédio vasodilatador sublingual. A conclusão de Zerbini deixou Jango desanimado.
Apesar do seu estado de saúde, não mudaria seus hábitos imediatamente. Em vez de marcar logo uma consulta em Lyon - sabia que teria de passar por vários obstáculos para deixar o Uruguai -, preferiu seguir a tática do doente que foge do hospital acreditando que assim poderia se curar.
Na mesma época da visita de Zerbini, um macabro boato chegou à imprensa brasileira. Maria Thereza não reagiu, apenas sorriu ao ser procurada por jornalistas. Não desdenhava da notícia. Era um riso nervoso. A novidade do momento dizia que ela teria sido “assassinada por motivos políticos". Uma nota publicada no Correio da Manhã com a manchete "Maria Teresa mais viva do que nunca" trazia um surreal desmentido: "(Maria Thereza) declarou aos jornalistas que nunca foi vítima de atentado de espécie alguma quando vivia no Brasil e que, no Uruguai, “ainda menos espera que isso venha a acontecer".
Ainda estavam apenas na metade de 1968. Viriam outras tristezas. Mais um grande amigo, destruído pela saudade, iria arriscar-se em um improvável retorno. Darcy Ribeiro, assim como Waldir Pires, não suportou o exílio. Aproveitou-se de um erro técnico no processo de julgamento que o condenou a três anos de prisão e conseguiu um habeas corpus, concedido pelo STF, para voltar ao Brasil em outubro.
Essa frágil condição não dava qualquer esperança para outros brasileiros. Sentindo-se profundamente desolado, Darcy classificou o exílio de "frustração, chateação e obsessão".' Em uma época sem lei, Darcy deveria saber que um habeas corpus não significava muito. Seria preso no Brasil pouco depois. As outras notícias que vinham de lá, trazidas por Talarico, não eram melhores. Jango estava novamente impedido de negociar seus bens e o Exército continuaria mantendo soldados nas suas fazendas.'
Nesse mesmo mês, enquanto a ditadura militar esmagava o que sobrava de democracia no Brasil, a manchete mundial era bem mais leve. Jango, Maria Thereza, João Vicente e Denize voltavam a pé de um almoço no restaurante Malecón e pararam em frente a uma banca para comprar revistas. Nos jornais, a manchete era o casamento de Jacqueline Kennedy com Aristóteles Onassis. Surpresos, João Vicente, Denize e Maria Thereza comentaram a notícia. Jango ficou calado. Mesmo assim, ela puxou conversa com o marido:
- Jango, o que tu achas desse casamento?
O político respondeu:
- Não sei não, Teca. Do ponto de vista do povo americano, essa união não será bem-vista pela maioria dos eleitores do Partido Democrata.
Apesar de sua política externa desfavorável ao Brasil, Kennedy é um símbolo. Não sei se esse casamento será bem recebido por eles.
- Ô Jango, tu só pensas em política. Eu estou perguntando sobre Jacqueline. Ela tem que seguir com a vida e tem o direito de se casar de novo, não achas?
- E tu, Teca, se eu morrer por aqui, tu vais te casar de novo?
- Jango, tu não sabes conversar. Eu acho que ela tem todo o direito de se casar e ser feliz. E olha que o Onassis é um coroa charmoso.
- É, Teca, ela vai ter muito tempo para navegar. O Onassis é um grande armador e, com essa jogada, ele se tornará novamente bem-vindo com sua frota nos Estados Unidos,"