Marcio Mafra
30/04/2020 às 00:00
Brasília - DF
Marrom-escuro, marrom-claro
Minha avó morava numa casa com jardim logo na frente. Parecia até uma daquelas casas de filme, só que, em vez de uma cerca branca,
tinha um muro bem baixinho e dois portões pretos de ferro.
Eu gostava de sentar no muro e assistir aos carros, às pessoas, aos jumentos passando. Sempre esquecia de levar meus brinquedos pra lá, daí ficava
dias e dias contando as cores dos carros.
Quando eu tinha seis ou sete anos, abriu uma locadora de video game na calçada da frente. E aí minhas férias se resumiam a pedir
dinheiro aos adultos pra jogar Street Fighter. Cinquenta centavos, meia hora. Oitenta centavos, uma hora. Eu sentava na cadeira de
macarrão verde e jogava na doida, apertando todos os botões, mas sempre ganhava dos meninos. Numa dessas vezes, conheci Diego.
Ele morava na casa ao lado da locadora, uma casinha pequena com porta de madeira e um janelão que vivia fechado. Eu nunca entrei lá,
ele dizia que a mãe era chata e não gostava de receber visitas. Então a gente brincava no jardim da minha avó, que não tinha flor nenhuma,
só grama mesmo, e no alpendre onde tinha um sofá de cipó seco. As pernas ficavam marcadas de um jeito engraçado.
A gente conversava muito, mesmo enquanto jogava Street Fighter.
Eu sempre escolhia a Chun Li, mas ele trocava toda vez. Quase sempre perdia e aí botava a culpa nos personagens. Ele que era ruim mesmo,
tentava acertar os golpes que a dona da locadora ensinava, x com y e duas vezes pra esquerda, e não conseguia fazer nada direito.
Por isso que eu apertava tudo junto. Dava certo.
Diego foi o meu primeiro melhor amigo, mesmo que a gente só se encontrasse duas ou três vezes no ano, nas férias da escola e, às vezes,
na semana do meu aniversário. Não lembro quando era o aniversário de Diego, nem se ele estudava. Só lembro da gente sentado na calçada,
as quatro pernas coladas e as risadas que a gente dava.
Ele colocava o braço ao lado do meu e dizia que o meu marrom era menos marrom que o dele. Eu achava isso um absurdo. Todo
marrom é marrom, não tem um que seja mais que o outro. Ele dizia que o dele era mais forte e brilhava mais. Eu ficava emburrada. Queria
brilhar também. Do lado da sua prima, você brilha. Ele falava sempre que eu ficava de cara fechada.
Minha prima era ruiva, os cabelos lisos, o rosto cheinho de sardas.
Eu não queria ser ruiva, mas queria ser como ela, ganhar os presentes que ela ganhava, passear com o pai para os lugares que ela passeava,
ter as barbies boas que ela tinha, e não aquelas de plástico oco que minha avó me dava.
Uma vez, ela disse que eu tinha roubado uma caixinha de música que era um porta-jóias e tinha uma bailarina rodopiando. Ela gritou
que era dela, que eu tinha roubado, que eu era uma ladrona. Me doeu muito ser chamada de ladrona, com sete letras.
Diego foi quem acreditou em mim primeiro, depois foi minha mãe. Quer dizer, não sei se minha mãe acreditou, ela só confirmou que
a caixinha era minha. Que era nossa, ela disse. Mas eu não me lembro de ter ganhado a caixinha. Acho que minha mãe só queria me proteger.
Acho que eu roubei mesmo, mas não lembro como e nem quando.
Até hoje essa história da caixinha fica futucando meu estômago.
Diego parado do lado de fora, tentando escutar a briga, e eu chorando dizendo que não era ladrona, não. Eu não roubei nada, vó, a caixinha
é minha. Chorei tanto que fiquei com dor de barriga, passei a tarde inteira no banheiro. Quando eu saí, já era de noitinha, e Diego tava
na calçada me esperando. Trouxe duas bolachas de chocolate pra mim.
Não aguentou esperar tanto e comeu as outras quatro do pacote.
Depois de um tempo as coisas ficaram um pouco estranhas.
Quando a gente brincava, sempre dava em briga. Sempre que eu ganhava no video game, ou quando eu não queria deitar na grama,
porque me dava uma coçadeira danada, ou se eu escolhia o último picolé de cajá, ou quando eu queria assistir ao Domingo Legal e ele
queria sentar na calçada pra contar carros.
A gente brigava e eu entrava na casa da minha avó e ficava na sala fingindo assistir à televisão, enquanto ele botava a cara na janela
aberta, ajoelhava no sofá de cipó e me chamava baixinho. Ei, ei, ei, ei.
Quando eu achava que já tinha castigado o suficiente, voltava pra fora.
Uma vez, minha prima saiu e foi conversar com ele. Eu fiquei com ciúmes, com medo de que ela roubasse meu amigo só pra se vingar pela caixinha de música. Olhei e vi os dois cochichando e Diego
com cara de triste. Fui chegando perto da janela pra tentar ouvir e, de repente, minha prima gritou que Diego gostava de mim. Gostava assim de outro jeito que não era só como amigo.
Ele pediu um beijo, um selinho. Fiquei pensando em como seria dar um selinho nele. As duas boquinhas se juntando e estralando em dois bicos, a gente sem jeito, depois com vergonha. Não pensei mais
longe que isso, só disse que não ia dar beijo em ninguém. Eu lembro que ele chorou e eu fui me esconder no quarto.
Só depois de quatro dias que voltamos a sentar na calçada pra conversar e contar carros. Eu estava ganhando com oito vermelhos contra três brancos, mas aí Diego achou melhor interromper tudo e
vestir uma expressão muito séria.
- Eu tenho que te contar uma coisa.
Fiquei caladinha, assustada com o tamanho da expectativa que crescia na minha barriga.
- Minha mãe disse que a gente não pode mais ser amigo.
Eu quis saber o motivo. Diego começou a chorar e eu segurei a mão dele bem forte. As lágrimas dele brilhando no rosto marrom-escuro. Minhas lágrimas brilhando no rosto marrom-claro.
- Ela disse que você é rica e eu sou pobre e a gente não pode ser amigo.
Achei muito injusto que a mãe dele visse o jardim de grama da minha avó e pensasse que eu era rica. Eu só ia pra lá duas vezes por ano.
Não era minha casa. Eu não era rica, eu nem tinha uma Barbie boa, que vinha com roupinha que parecia roupa de gente. Eu nem tinha ganhado
a Barbie grávida que vinha com um bebezinho que você empurrava na barriga e tapava com uma parte que encaixava e imitava um bucho
de grávida de verdade. Eu nem era ruiva e sardenta que nem minha prima, com os vestidos dela, os sapatos dela e os passeios com o pai.
A gente chorou, chorou e chorou até ficar tarde da noite, que era a nossa última noite como amigos. Ele levantou e foi embora me
olhando até entrar em casa.
Depois olhou mais um pouco de dentro, pela porta de madeira, e aí a mãe dele fechou a brecha e eu nunca mais vi Diego.