Marcio Mafra
11/07/2020 às 16:17
Brasília - DF
o cheiro do frango que ela havia fritado na véspera ainda
estava no ar e os pratos continuavam na pia. O ossinho da sorte
secava na mesa, cercado pelos copos pegajosos em que tomaram
cerveja e pelas xícaras pegajosas de café. As roupas dela estavam
jogadas numa cadeira, as dele quase todas no chão. Ele tinha
acordado, ela dormia. Ela dormia no lado dela, a cabeça escura
longe dele, sem fazer nenhum ruído.
Ele se reclinou um pouco e observou o rosto dela. O rosto
dela agora seria, para sempre, mais misterioso e impenetrável do
que qualquer rosto estranho. Os rostos de pessoas estranhas não
tinham segredos, pois a imaginação não os envolvia em nenhum
mistério. Mas o rosto de quem se ama é desconhecido exata-
mente por estar envolto em uma parte grande de nós mesmos. É
um mistério que contém, como todo mistério, a possibilidade do
sofrimento.
Ela dormia. Vivaldo achou que ela dormia em parte para
evitá-lo. Ele deixou a cabeça cair no travesseiro, olhando para as
rachaduras no teto. Ida estava na cama dele, mas distante; ela
estava com ele, mas não estava com ele. Em algum lugar pro-
fundo e secreto, ela monitorava a si mesma, se controlava, lutava
contra ele. Vivaldo achava que ela tinha decidido muito tempo
antes quais seriam exatamente os limites, quanto ela poderia ofe-
recer, e não conseguiu fazer com que ela desse nem um centavo
a mais. O sexo que ela fez com ele foi como uma técnica de pa-
cificação, um meio para atingir algum outro fim. Embora ela até
possa ter tido a intenção de agradã-lo, parecia querer principal-
mente levá-lo à exaustão; e permanecer, acima de tudo, às mar-
gens do prazer enquanto se esforçava ao máximo para afogá-Ia
na corrente. O prazer dele bastava para ela, ela parecia dizer, o
prazer dele era o dela. Mas ele queria que o prazer dela fosse
dele, para que os dois se afogassem juntos na corrente.
Ele tinha dormido, mas mal, consciente do corpo de Ida a
seu lado, e consciente de um fracasso mais sutil do que qualquer
outro que já tivesse experimentado.
Sua mente estava ocupada com questões nas quais jamais
se permitira pensar, mas cuja hora havia chegado. Ficou imagi-
nando quem já havia estado com ela; quantos, com que frequên-
cia, por quanto tempo; o que ele ou outros antes dele significa-
vam para ela; e ficou imaginando se o homem ou os homens
que ela amou haviam sido brancos ou negros. Que diferença
faz?, se perguntou. Que diferença faz qualquer uma dessas coi-
sas? Um ou mais, branco ou negro - qualquer dia ela acabaria
lhe contando. Eles saberiam tudo um sobre o outro, tinham
tempo, ela ia lhe dizer. Ia mesmo? Ou será que ia apenas aceitar
os segredos dele do modo como aceitou o corpo dele, feliz por
servir como veículo para o alívio dele? Ofereceria em troca (pois
ela conhecia as regras) revelações destinadas a tranquilizar e
também a frustrá-Ia; a frustrar, na verdade, qualquer tentativa
dele de ir mais fundo naquele incrível país onde, como a prince-
sa do conto de fadas aprisionada em uma torre alta e vigiada por
bestas ferozes, vítima de um feitiço e do exílio, ela fazia sua ron-
da secreta de dias secretos.
Era começo da manhã, perto das sete, e não havia barulho
em lugar algum. A garota a seu lado se agitou em silêncio em
seu sono e jogou uma mão para cima, como se estivesse assusta-
da. O olho escarlate em seu dedo mindinho cintilou. Seu cabelo
selvagem estava desarrumado e embaraçado, e o rosto, no sono,
não era o mesmo de quando ela estava acordada. Ela havia tira-
do a maquiagem, ficando quase sem sobrancelhas, e os lábios
sem batom eram macios e indefesos. A pele estava mais escura
do que durante o dia e a testa redonda e alta tinha um brilho
baço, como mogno. Parecia uma menininha dormindo, mas
uma menina desconfiada; uma das mãos meio g11e encobria o
rosto e a outra se escondia entre as coxas. Isso o levou a pensar,
de algum modo, em todas as crianças adormecidas, filhas de pes-
soas pobres. Tocou de leve a testa dela com os lábios, depois saiu
da cama em silêncio e foi ao banheiro. Ao voltar ficou um ins-
tante olhando para a cozinha, depois acendeu um cigarro e le-
vou o cinzeiro para a cama. Deitou-se de barriga para baixo, fu-
mando, os braços longos pendendo para o chão, onde tinha
deixado o cinzeiro.
"Que horas são?"
Ele se levantou, sorrindo: "Não sabia que você estava acor-
dada". E, estranhamente, de súbito se sentiu terrivelmente tími-
do, como se fosse a primeira vez que acordasse nu ao lado de uma
mulher nua.
"Ah", ela disse, "eu gosto de observar as pessoas enquanto
elas acham que eu estou dormindo."
"Bom saber. Há quanto tempo você estava me observando?"
"Não muito. Desde que você saiu do banheiro. Vi o seu
rosto e fiquei imaginando o que você estaria pensando."
"Eu estava pensando em você." E ele deu um beijo nela.
"Bom dia. São sete e meia."
"Meu Deus. Você sempre acorda tão cedo?" E ela bocejou
e sorriu, irônica.
"Não. Mas acho que eu não via a hora de te ver de novo."
"Bom, vou me lembrar disso", ela disse, "quando você co-
meçar a acordar ao meio-dia ou mais tarde e parecer que não
quer sair da cama."
"Olha, eu talvez não esteja ansioso para sair tão cedo da
cama." Ela fez um movimento na direção do cigarro e ele o se-
gurou enquanto ela dava uma ou duas tragadas. Depois ele apa-
gou o cigarro no cinzeiro. Inclinou-se sobre ela. "E você?"
"Você é um doce", ela disse e, depois de um momento, "vo-
cê é um .rnergulhador de mares profundos." Os dois coraram.
Ele pôs as mãos nos seios dela, que eram pesados e bem separa-
dos, com mamilos de um marrom-avermelhado. Os ombros lar-
gos dela tremeram de leve, uma pulsação no pescoço. Ela olhou
para ele com uma expressão ao mesmo tempo preocupada e in-
diferente, calma e assustada.
"Me ame", ele disse. "Eu quero que você me ame."
Ela pegou a mão dele, que percorria a barriga dela.
"Você acha que eu sou uma dessas garotas que simplesmen-
te amam amar."
"Gatinha", ele disse, "com certeza; nós vamos ser ótimos,
eu garanto. A gente ainda nem começou." A voz dele tinha se
transformado num sussurro e as mãos dos dois se entrelaçaram
em um provocante cabo de guerra.
Ela sorriu. "Quantas vezes você já disse isso?"
Ele fez uma pausa, olhando por cima da cabeça dela em
direção às cortinas que mantinham a manhã longe do aparta-
mento. "Acho que eu nunca disse isso. Nunca me senti assim."
Ele olhou outra vez para ela e a beijou de novo. "Nunca."
Depois de um instante ela disse: "Eu também não". Ela
disse rapidamente, como se tivesse colocado um comprimido na
boca e ficado surpresa com seu gosto e preocupada com seus
efeitos.
Ele olhou nos olhos dela. "Verdade?"
"Verdade." Depois ela baixou os olhos. "Tenho que tomar
cuidado com você."
"Por quê? Não confia em mim?"
"Talvez eu não confie em mim."
"Talvez você nunca tenha amado um homem", ele disse.
"Nunca amei um homem branco, essa é a verdade."
"Ah, bom", ele disse, sorrindo, tentando esvaziar a cabeça
de uma porção de dúvidas e medos, "fique à vontade". Deu ou-
tro beijo nela, um pouco embriagado pelo calor, pelo gosto, pelo
cheiro dela. "Nunca", ele disse, sério, "nunca ninguém como
você." A mão dela relaxou um pouco e ele a conduziu para bai-
xo. Beijou o pescoço e os ombros dela. "Adoro as suas cores.
Você tem todas essas cores diferentes, malucas."
"Meu Deus", ela disse, riu de um jeito brusco e tentou tirar
a mão, mas ele a segurou: o cabo de guerra recomeçou. "Eu sou
da mesma velha cor de cima a baixo."
"Você não consegue se ver inteira. Eu consigo. Você tem
uma parte que é mel, outra que é cobre, uma parte que é ouro ... "
"Meu Deus. O que a gente vai fazer com você hoje?"
"Eu te mostro. Uma parte de você também é negra, como a
entrada de um túnel ... "
"Vivaldo.' A cabeça dela rolou no travesseiro de um lado
para o outro em uma espécie de tormento que não tinha nada a
ver com ele, mas pelo qual ele era o responsável mesmo assim.
Ele pôs a mão na testa dela, que já começava a ficar úmida, e se
impressionou com o modo como ela o olhou naquele instante;
olhou para ele como se fosse, de fato, uma virgem, prometida
desde o nascimento para ele, o noivo; cujo rosto ela via agora
pela primeira vez, no escuro do quarto nupcial depois que todos
os convidados do casamento tinham ido embora. Não havia ba-
rulho de festa, apenas silêncio, nada que não estivesse naquela
cama, a violação pelo corpo do noivo era sua única esperança.
No entanto ela tentou sorrir. "Nunca conheci um homem como
você." Ela disse isso em voz baixa, num tom que mesclava hosti-
lida e espanto.
"Bo~~ _te disse ... também nunca conheci uma mulher
como você."~s ficou imaginando que espécie de homem ela
tinha conhecido. Com delicadeza, afastou as pernas dela; ela
permitiu que ele colocasse a mão dela no sexo dele. Ele achou
que, pela primeira vez, seu corpo se apresentava a ela como um
mistério e que, imediatamente, por isso, ele, Vivaldo, se tornou
completamente misterioso aos olhos dela. Ela o tocou pela pri-
meira vez com espanto e terror, percebendo que não sabia acari-
ciá-lo. Ela se dava conta de que o que ele queria era ela: isso
significava que ela já não sabia o que ele queria. "Você já dormiu
com uma porção de mulheres como eu, não foi? Com garotas
negras."
"Eu dormi com uma porção de garotas de todo tipo." Ne-
nhum deles ria agora; eles sussurravam, e o calor entre os dois
aumentou. O aroma dela se elevou para encontrá-lo, misturou-
-se ao cheiro dele, um cheiro mais nítido de suor. Ele estava
entre as pernas dela e nas mãos dela, os olhos de Ida encaravam
com medo os dele.
"Mas com negras também?"
"Sim."
Houve uma pausa longa, ela suspirou um suspiro longo e
trêmulo. Ela arqueou a cabeça para cima, para longe dele. "Eram
amigas do meu irmão?"
"Não. Não. Eu paguei para elas."
"Ah." A cabeça dela caiu, ela fechou os olhos, fechou as
pernas, depois as abriu de novo. Ele tirou as cobertas que esta-
vam no caminho e depois, por um instante, semiajoelhado,
olhou para o mel, o cobre, o ouro e o negro que havia nela. A
respiração de Ida ficou mais curta, aguda, ofegante, trêmula. Ele
queria que ela virasse o rosto para ele e abrisse os olhos.
"Ida. Olhe pra mim."
Ela emitiu um som, uma espécie de gemido, virou o rosto
para ele, mas continuou de olhos fechados. Ele pegou a mão
dela outra vez.
"Vamos. Me ajude."
Os olhos de Ida se abriram por um segundo, velados, e ela
sorriu. Ele se inclinou sobre ela devagar, permitindo que as
mãos dela o guiassem. Beijou-a na boca. Eles se encaixaram,
trêmulos, as mãos dela se agitaram, subiram e ficaram nas costas
dele. Eu paguei para elas. Ela suspirou de novo, um suspiro di-
ferente, longo e de quem se rende, e a luta começou.
Não foi como o alvoroço da noite anterior, em que ela dava
pinotes debaixo dele como um cavalo bravo ou um peixe que
tivesse ido parar na praia. Ela agora estava concentrada a ponto
de tremer e, como ele percebeu que qualquer momento impen-
sado a faria deslizar para longe dele, Vivaldo também se pôs aler-
ta. As mãos dela se moveram pelas costas dele, para cima e para
baixo, às vezes parecendo querer puxá-lo para perto, às vezes
tentadas a afastá-lo, se movendo em uma terrível e bela indeci-
são que o fez gemer, baixinho, no fundo da garganta. Ela se
abriu diante dele e no entanto também recuou diante dele; ele
teve a sensação de viajar por um rio selvagem na floresta, procu-
rando a nascente oculta além da folhagem negra, perigosa, en-
charcada. Depois, por um momento, eles pareceram avançar. As
mãos dela se libertaram, as coxas se soltaram de modo inelutá-
vel, os ventres se colaram de forma brutal e um assobio curioso,
baixo, abriu caminho pela garganta dela, atravessando os dentes
à mostra. Depois ela diminuiu o ritmo, o momento havia passa-
do. Ele descansou. Então recomeçou. Nunca tinha sido tão pa-
ciente, tão determinado nem tão cruel. Na noite anterior ela o
observara; hoje ele a observava; estava decidido a fazer com que
ela atravessasse a ponte e se transformasse em sua propriedade
mesmo que, se no momento em que ela finalmente dissesse o
nome dele, o coração dentro do peito dele explodisse. Isso, de
todo mod<\..parecia mais iminente que o efluxo de sua semente.
Ele sentia desejo como nunca antes, sentia-se repleto de um jei-
to novo, e onde quer que as mãos dela pousassem para logo esca-
par ele estava frio. As mãos dela se agarraram ao pescoço dele
como se ela estivesse se afogando, e Ida ficou em um silêncio
absoluto, como uma criança que fica em silêncio antes de acu-
mular força suficiente para gritar, antes de o soco atingir o alvo,
antes do início de uma longa queda. E de modo implacável,
cruel, ele a empurrou para o abismo. Não sabia se o corpo dela
se movimentava ou não junto com o dele, o corpo dela era qua-
se dele. Sentiu a cama pulsar sob os dois; ouviu a cama cantar.
As mãos dela enlouqueceram, voando do pescoço dele para a
garganta, para os ombros, para o peito dele, ela começou a se
debater sob Vivaldo, tentando se libertar e tentando se aproxi-
mar. As mãos dela, por fim, fizeram o que desejavam e agarra-
ram o corpo dele, acariciando, rasgando, queimando. Vai. Vai.
Ele sentiu um tremor no ventre dela, logo abaixo dele, como se
algo ali tivesse se quebrado, e o tremor correu para cima espan-
tosamente, parecendo separar os seios dela, como se Vivaldo a
tivesse dividido ao meio de cima a baixo. E ela gemeu. Foi um
curioso som de alerta, como se ela estivesse erguendo a mão de
frente para o mar. O som do desamparo dela fez com que todo o
afeto, a ternura e o desejo que ele sentia voltassem. Estavam
quase lá. Vai vai vai vai. Vai! Ele começou a galopar em cima
dela, gemendo um pouco de alegria, e pela primeira vez sentiu
um pouco do frio que vinha do medo de que uma parte tão gran-
de dele, havia tanto tempo amaldiçoada, estivesse agora se puri-
ficando. Os gemidos dela deram lugar a soluços e gritos. Vivaldo.
Vivaldo. Vivaldo. Ela estava à beira do abismo. Ele ficou suspen-
so, suspenso, se agarrando a ela como ela se agarrava a ele, cha-
mando o nome dela, molhado, ansioso, explodindo, cego. O lí-
quido começou a sair dele como o leve e fraco vazamento que
precede desastres nas minas. Sentiu seu rosto todo franzir, sentiu
a corrente de ar na garganta e chamou outra vez o nome dela,
com todo o amor que ele sentia disparando, disparando e se der-
ramando dentro dela.
Depois de um longo tempo, ele sentiu os dedos dela em seu
cabelo e olhou-a no rosto. Ela sorria - um sorriso pensativo,
desorientado. "Tire esse seu corpo grande e branco de cima de
mim. ão consigo me mexer."
Ele deu um beijo nela, absolutamente exausto e tranquilo.
"Antes me diga uma coisa."
Ela pareceu manhosa, divertida e irônica; como uma mu-
lher e como uma garotinha tímida. "O que você quer saber?"
Ele sacudiu o corpo dela, rindo. "Vai. Me diz."
Ela deu um beijo na ponta do nariz dele. "Nunca tinha me
acontecido antes ... desse jeito, nunca."
"Nunca?"
"Nunca. Quase ... mas não, nunca." Depois: "Eu fui boa
pra você?".
"Sim. Sim. Nunca me abandone."
"Deixa eu levantar."
Ele rolou, de costas, e ela se levantou da cama e foi para o
banheiro. Ele olhou o corpo alto, árido, que agora lhe pertencia,
desaparecer. Ouviu a água correndo no banheiro, depois o chu-
veiro. Adormeceu.
Acordou no começo da tarde. Ida estava em frente ao fogão,
cantando.
If you can't give me a dollar,
Gíve me a lousy dime ...
Ela tinha lavado a louça, limpado a cozinha e pendurado as
roupas dele. Agora estava fazendo café.
Just want to feed
This hungry man of mine.