Marcio Mafra
08/08/2020 às 13:04
Brasília - DF
O Produto estava bem encaminhado: uma linha de produção seria montada na China. Mais barato fabricar lá,
dizia Bollo. amparado nos números que Niquil, extrapolando suas funções de diretor de RH, apresentava no PowerPoint. Souza, que adquirira o desagradável hábito de
visitar minha sala, me apresentava números mais simples e menos otimistas. Se o Produto fracassar, dizia, é o fim. Será a falência da empresa. E, se a empresa quebra, quem vai
empregar gente da nossa idade?
Novas dificuldades surgiam na vida de Souza justo naquele momento delicado. Ou, antes, reaparecia a dificuldade de sempre, com uma diferença significativa: o filho
pedia, de novo, dinheiro para voltar para casa; dessa vez, porém, ele não só informava seu paradeiro - Belém do Pará -, como ainda solicitava ao pai que providenciasse
a passagem aérea. Souza sentia-se ao mesmo tempo esperançoso e receoso: acreditava que retomaria o controle sobre o filho errático se ele voltasse para São Paulo, mas
temia que fosse tudo um esquema fraudulento. E se Huguinho afinal não pegasse o avião? Se desse um jeito de mudar o destino para Rio Branco, Lima, La Paz, desaparecendo,
como de costume, por mais alguns meses, anos, eternidades? Souza angustiava-se e, ainda comovido com a mão casual que pousei sobre seu ombro, compartilhava a
angústia comigo, com inédita franqueza. (Conservava certas reservas: nada dizia sobre seitas, discos voadores, gurus da Nova Era, lavagem cerebral. Tudo o.que precisava ser
dito era que o filho estava havia muito tempo longe - e que tinha um problema.)
Souza não se interessava pela anunciada viagem de inspeção à fábrica chinesa. O escritório todo especulava sobre quem seria o escolhido para acompanhar
Eollo e Niquil a Pequim, mas Souza não era ingênuo a ponto de adicionar essa ansiedade à sua bagagem já bem pesada de preocupações: não seria ele, é óbvio.
Roberto Suarez despontava como o candidato natural, todo dia reunido a portas fechadas com Eollo. Verdade que essas reuniões nem sempre eram convocadas pela chefia:
tipicamente, era Suarez quem, após alguns momentos de inspiração no banheiro, batia à porta do diretor.
Não sei de onde viria esse estranho sobrenome espanhol (e sem acento no A): a despeito de certas predileções colombianas, Suarez passava longe do fenótipo hispano- merícano.
Branco, pálido, tinha até sardas, que lhe davam um ar de inocência pueril contrastante com o modo agressivo como se portava no trabalho. Era mesmo jovem,
o Suarez. Trinta e poucos anos. Jovem e, claro, arrojado.
Não é o que se espera no nosso ramo? O executivo arrojado: a expressão é um clichê e um eufemismo. Eollo, no entanto, desejava o monopólio do arrojo. Em mais de uma
ocasião, eu o vi interromper, impaciente, o que Suarez dizia:
- Não, não é nada disso. E nem é hora de discutir esse assunto.
Suarez conseguiu ainda a façanha de fazer Niquil erguer os olhos de sua planilha. Foi quando repetiu uma daquelas fórmulas que EoIlo imaginava ter inventado:
- Para fazer a diferença, tem que fazer diferente.
Niquil levantou a cabeçorra, ajustou os óculos e apertou um pouco os olhos, para melhor distinguir as feições infantis de Suarez.
Constatava um erro nas suas minuciosas avaliações e tabulações: já se passou uma quinzena desde o anúncio dos cortes, e o bajulador que repete frases inanes do chefe
continua aqui.
Mas exagero! O olhar mortiço do diretor de Recursos Humanos não poderia expressar tanta coisa injusta, poderia? Suarez era, bem no fim das contas, um rapaz brilhante, um dos melhores de sua área.
Colega leal, parceiro valoroso. Devo-lhe certa gratidão: ao tempo em que seu chefe imediato era Santini, ele me trazia informações preciosas (tanto mais preciosas por não serem verdadeiras) sobre
meu rival. Sim, grande Suarez! Não sei por onde andará hoje, mas é certo que tem um belo futuro pela frente. Teria sido o homem certo para visitar, ao lado de Bollo. nossa
linha de produção chinesa. Suarez até mereceria ser o primeiro a saber o que, afinal, fabricaríamos lá.
Meu amigo Francisco tinha a sorte de conhecer bem seu produto. Com a vantagem adicional do produto ser à prova de obsolescência: quando chegar à idade adulta -
ou já na adolescência, contra todas as leis que inutilmente buscam coibir o consumo de álcool nessa fase -, Zezinho.
o neto do Souza que tão precocemente já domina o touch screen, beberá cerveja. Os bons números de venda regularmente obtidos por Francisco chamaram a atenção de seus
superiores, que afinal descobriram as qualificações do meu amigo. Seguiram-se entrevistas, sondagens, avaliações e reavaliações, e então veio a oferta internacional: diretor
de operações de uma cervejaria no Meio-Oeste americano.
Uma área pequena, mas "estratégica", com "imenso potencial para crescimento", dizia Francisco (não era conversa vazia: menos de um ano depois, ele já era alçado a uma
nova posição na Costa Oeste).
- Quando você vai para os Estados Unidos? - perguntou Jorge.
- Finzinho de maio. Eu não ia perder o teu casamento por nada.
Foi na primeira reunião depois da retirada de Fábio que Francisco nos deu a notícia. Brindamos, brincamos,
rimos. Esquecemos os exercícios de Teufelsdrõckh para dedicar a noite apenas à conversa. Fizemos piada sobre o grotão para onde Francisco estava indo: "Vai virar rednecki", O
encontro foi na minha casa, e Francisco, talvez por deferência ao anfitrião, lá pelas tantas resolveu dividir as atenções que estava recebendo. Perguntou como iam as coisas
no meu trabalho.
- Bom, você vai pro Kansas e eu vou pra China - me vi respondendo.
Surpresa geral.
- China? Como assim?
- Calma, amigos, não é em definitivo, só uma visita de inspeção à fábrica que vai fazer o novo Produto.
Mais brindes, brincadeiras, piadas. Era uma mentirinha sem consequências, uma bravata até bem modesta, se é que bravatas podem ser modestas.