Marcio Mafra
09/08/2020 às 10:01
Brasília - DF
Estacionámos junto a um prunus padus em flor. Os nórdicos
chamam a esta árvore cerejeira de Hegg, uma caducifólia de
floração branca e perfumada, com um fruto negro amargo. Na
Idade Média acreditava-se que a casca tinha propriedades es-
pirituais, que afastava a peste. Em Portugal é conhecida por
azereiro-dos-danados,
O guarda da penitenciária era um ser redondo de cara e bar-
riga, e, assim que me viu entrar, escoltado pelas duas agentes
loiras, pôs-se hirto como um pé de cana-de-açúcar. Trocadas al-
gumas palavras em norueguês, abriram-me a mala e espalharam
os meus pertences sobre o balcão. Um iPod, um par de auscul-
tadores, um computador, um telemóvel, dois livros - uma edi-
ção do Distraídos venceremos, de Paulo Leminski, presente de
um amigo brasileiro, Rodrigo Amarante, e uma edição de Nós,
os do Makulusu, de José Luandino Vieira, roubados da biblio-
teca do meu avô -, calçado, roupa interior, um par de t-shirts e
uma muda de calças. Depois de listados cada um dos objetos,
tiraram-me as algemas e, com o pulso ainda a latejar, assinei a
folha do inventário. O pé de cana-de-açúcar pouspu os olhos na
minha assinatura, estudando-a, como se procurasse determinar
naquele rabisco nervoso se eu era de facto culpado ou inocente.
Tudo lhes servia. Estendeu-me o meu telemóvel e disse-me que
tinha direito a um telefonema. "Fala em inglês!", advertiu-me.
A primeira pessoa em quem pensei foi na Teresa, a generosa
e sempre otimista Tê, minha advogada. Imaginei-a nas suas au-
las de dança contemporânea, atividade que lhe ocupa as tardes
de sábado e permite que se abstraia dos processos em tribu-
nal. A notícia iria apanhá-Ia em contramão e a partir de Lisboa
ela não teria muito como ajudar. Lembrei-me depois de Phil, o
meu manager, e da Belinda, minha agente, mas ambos vivem
em Londres e, tal como Teresa, por mais preocupados e bem-
-intencionados que sejam, nenhum deles iria conseguir tirar-
-me deste aperto antes do início da próxima semana, e tudo me
dizia que nessa altura já estaria condenado, num centro para
imigrantes ilegais e à espera de ser repatriado. O pé de cana-
-de-açúcar estava a ficar impaciente, e recebi o telemóvel da sua
mão. Pensei no meu pai. Não por sentir que ele me poderia va-
ler, mas por me parecer que, na história de outro qualquer, um
pai seria o primeiro na lista de emergências de um filho. Mas
precisava de alguém perto, e que me fosse próximo, alguém da
banda, precisava de Branko, só ele iria entender a gravidade da
situação, atuar primeiro e fazer as perguntas depois.