Marcio Mafra
18/08/2020 às 08:12
Brasília - DF
As meninas da turma 6 eram terríveis e todo mundo sabia.
Todos os professores da Escola Primária para Meninas de Butula
tinham uma história que envolvia a turma 6 - a vez que as me-
ninas deixaram uma instrutora trancada no banheiro masculino
a noite inteira; a vez que lideraram uma greve sitiada depois que
a escola serviu gítheri por dez dias seguidos; o incidente com o
bode no almoxarifado. Depois que souberam que Aaron, o vo-
luntário do Corpo da Paz americano, havia sido designado para
a turma 6, todos os professores lhe lançavam um olhar solidário
quando cruzavam com ele no corredor, e uma das professoras
mais jovens sentiu tanta pena que, enquanto comentava a situa-
ção com os colegas no refeitório, começou a chorar.
Mas quando Aaron falou com a professora e implorou por
dicas de como lidar com as garotas, ela só conseguiu dizer, com
Um suspiro fatalista: "Não dá pra lidar com aquelas lá. Elas têm
o diabo no corpo, e não há nada que você possa fazer a não
ser. .. ", ela bateu com a mão no ar para mostrar.
Plaft·
Todos os membros da equipe tinham cumprido pena na
turma 6. No entanto, dentre todos os professores maltratados,
~
/ Aaron tinha medo de arrastar as meninas para fora e dar-Ihes
ma chibatada nas panturrilhas. Por causa disso, ele não conse-
uia nem se virar de costas para escrever no quadro-negro ("0/
s vírus do HIV é transmitido/são transmitidos das seguintes for-
mas ... ") sem que o infinito deboche borbulhante das meninas
fervesse e virasse o caos completo.
As meninas imitavam sua voz quando ele falava, olhando
para ele e dando gritinhos num tom agudo e anasalado. Jogavam
coisas nele: não só giz, mas também pedaços de papel encharca-
dos de cuspe, grãos de milho, grampos de cabelo e bolas cascudas
e esverdeadas de catarro. Certa vez, quando ele havia acabado
de devolver uma folha de exercícios, Roda Kudondo foi saltitan-
do até a mesa e enfiou o caderno na cara dele, resmungando de
um jeito enrolado que supostamente seria a imitação do sotaque
texano arrastado do professor. A sala caiu na gargalhada e Aa-
ron, sem entender nada, mandou ela se sentar. Mas ela apenas
repetiu o que tinha dito e enfiou o dedo indicador bem fundo
na boca, cutucando a bochecha por dentro até o rosto inflar. Ela
estava dando em cima dele, e essa piada - se oferecer para ir
com ele atrás da escola e chupá-Io em troca de uma nota mais
alta - o deixou corado e horrorizado, mas ela voltou para sua
carteira numa boa, em meio a gritos de apoio da turma.
Depois, numa tarde úmida de dezembro, Linnet Oduori
seguiu Aaron dos portões da escola até a casa dele, miando feito
um gato o caminho inteiro. Linnet era a menor menina da tur-
ma 6, e era tão linda e delicada quanto o pássaro que havia inspi-
rado seu nome. * Até esse momento, Aaron a transformara numa
espécie de mascote, elogiando-a sempre que podia e fazendo de
seu trabalho medíocre um exemplo para as outras - um favori-
tismo preguiçoso e descabido do qual, naquela tarde, ela extraiu
uma estranha mas efetiva vingança.