Jackeline Nagao
06/09/2020 às 17:02
Rio Branco - AC
O Quintal
Que é um quintal? Abro o meu velho Morais, o meu velho e querido Antônio de Morais Silva, e leio esta definição: “É na Cidade, ou Vila, um pedaço de terra murada com árvore de fruta, etc.
” Não era bem isso o que chamávamos quintal na casa de meu avô materno no Recife, a casa da rua da União que celebrei num poema. [Evocação do Recife] Então vamos ver o que diz o Aulete no verbete “quintal”.
Reza assim: “Porção de terreno junto da casa de habitação, com horta e jardim.” Está melhor, quer dizer, aplica-se melhor ao que chamávamos quintal na casa de meu avô.
Apuremos a etimologia, recorramos ao dicionário etimológico de Antenor Nascentes. Eis o que ele averba: “Quintal – 1 (horto): Do lat. quintanale (Leite de Vasconcelos, Lições de Filologia 306) cfr. quinta. A. Coelho tirou de quinta o sufixo al”. No verbete “quinta” registra Nascentes que em Portugal, na Beira, ainda hoje a palavra significa “pátio”.
O quintal da casa da rua da União era isto: uma pequena porção de terreno em quadrado para onde dava a varanda da sala de jantar e em quina com esta a varanda com acesso para a copa, a cozinha, o banheiro, o quarto de guardados; do lado oposto à segunda varanda, bem mais estreita que a primeira, havia o paredão alto da casa da vizinha, onde moravam umas tias de José Lins do Rego; ao fundo ficava o galinheiro, e ao lado deste, o cambrone.
Aqui no Sul muita gente não sabe o que é cambrone e ainda menos por que motivo no Recife daquele tempo (começo do século) se dava à privada o nome do general de Napoleão, que intimado pelo inimigo a render-se na Batalha de Waterloo, respondeu energicamente com uma só palavra de cinco letras. Pois fiquem sabendo que o motivo foi este: o engenheiro francês que projetou e dirigiu no Recife o serviço de instalação dos esgotos chamava-se Cambrone, mas não sei se era parente do herói de Waterloo. Os cambrones do Recife eram o que havia de mais primitivo, mas por que o menino de sete anos, futuro poeta a seu malgrado, gostava de estar ali? Só muitos anos depois, homem feito, descobriu a razão, ao ler o poema de um menino genial que se chamava Jean-Nicolas-Artur Rimbaud, poema intitulado “Les poètes de sept ans”, escrito aos dezessete anos. Dizia ele, a meio do poema:
L’eté
Surtout, vaincu, stupide, il était entêté
À se renfermer dans la fraicheur des latrines.
Havia, muito, essa “fraicheur” (*) no cambrone daquele quintal da rua da União…
Taboola – Body
O quintal, porém, tinha outros atrativos. Primeiro, num canto da varanda da sala de jantar, a grande talha de barro, refrescadora da água, que se bebia pelo “coco”, vasilha feita do endocárpio do fruto do mesmo nome e com bonito cabo torneado; havia, no centro do quintal o coradouro, “quaradouro”, como dizíamos, magnífico quaradouro, com as suas folhas de zinco ondulado; em torno, ao longo das varandas e do paredão da casa das Lins, ao fundo, dissimulando o galinheiro, também magnífico (um senhor galinheiro!), e o cambrone, os canteiros de flores singelas, hortaliças, arbustos, medicinais de preferência (sabugueiro, malva, etc.). Minha avó estimulava as minhas veleidades de hortelão: “Plante estes talinhos de bredo, que quando eles derem folha eu lhe compro”.
E eu plantava e ela comprava o bredo, e com esse dinheiro comprava eu flecha e papel de seda para fabricar os meus papagaios… Essa atividade não me fez agricultor nem negociante, mas as horas que eu passava no quintal eram de treino para a poesia. Na rua, com os meninos da minha idade eu brincava ginasticamente, turbulentamente; no quintal sonhava na intimidade de mim mesmo. Aquele quintal era o meu pequeno mundo dentro do grande mundo da vida.