Marcio Mafra
20/09/2020 às 11:55
Brasília - DF
Nunca vou saber as verdadeiras razões da separação de meus pais. No entanto, deve ter existido algum desentendimento desde o começo. Um defeito de fábrica no encontro, um asterisco que ninguém viu ou quis ver. Naquele tempo, meus pais eram jovens e bonitos. Os corações estufados de esperança, como o sol das independências. Vocês precisavam ver! No dia do casamento, Papai não cabia em si de alegria por ter posto uma aliança no dedo dela. Claro, meu pai, com seus olhos verdes mordazes, seu cabelo castanho-claro de mechas louras e sua estatura de viking, tinha certo encanto. Mas não chegava às canelas de Mamãe. E as canelas de Mamãe eram especiais! Eram o início de pernas compridas e esbeltas que as mulheres observavam com olhares assassinos e os homens espiavam de olhos entreabertos, através das persianas entrecerradas. Papai era um jovem francês da região de Jura,um homem que tinha chegado à África por acaso, para cumprir o serviço civil. Vinha de um lugarejo nas montanhas cujas paisagens se pareciam, de forma impressionante, com as do Burundi, mas, em sua região, não havia mulheres com o porte de Mamãe, juncos de água doce com silhueta delgada, belezas esbeltas como arranha-céus de pele negra da cor de ébano e os olhos grandes das vacas Ankole. Vocês precisavam ouvir! No dia do casamento, uma rumba indolente escapava dos violões 14 pouco afinados, e a felicidade assobiava um chá-chá-chá sob o céu salpicado de estrelas. Estava tudo certo! Só faltava… amar. Viver. Rir. Existir. Sempre em frente, sem parar, até o fim da pista e mesmo um pouco mais além. Pena que meus pais eram adolescentes perdidos, a quem exigiam subitamente que se tornassem adultos responsáveis. Ainda estavam saindo da puberdade, de seus hormônios, das noites em claro, mas já precisavam se livrar dos cadáveres, das garrafas entornadas, esvaziar os cinzeiros cheios de bitucas, guardar os vinis de rock psicodélico nas capas, dobrar as calças boca de sino e as túnicas indianas. A sineta havia tocado. Chegaram os filhos, os impostos, as obrigações e as preocupações — cedo demais, rápido demais — e, com eles, a insegurança e os bandidos de estrada, os ditadores e os golpes de Estado, os programas de ajuste estrutural, a renúncia aos ideais, a dificuldade de se levantar pela manhã, o sol que a cada dia se espraia um pouco mais sobre a cama. A realidade se impôs. Dura. Feroz. A doçura dos começos se transformara em cadência tirânica como o tique-taque implacável do pêndulo de um relógio. A evolução natural das coisas agiu como um bumerangue, e meus pais o receberam bem no meio da cara, compreendendo que haviam confundido desejo com amor e inventado qualidades um para o outro. Não tinham compartilhado seus sonhos; apenas suas ilusões. Cada um teve seu próprio sonho, só seu, egoísta, e um não estava pronto para satisfazer as expectativas do outro. Mas um tempo antes disso tudo, antes do que estou prestes a contar e de todo o resto, havia felicidade, a vida sem necessidade de explicação. A existência era tal como era, tal como sempre tinha sido e como eu queria que continuasse a ser. Um sono sereno, tranquilo, sem mosquitos zumbindo no ouvido, sem essa chuva de perguntas que 15 havia começado a tamborilar no telhado da minha cabeça. No tempo da felicidade, se me perguntavam “Tudo bem?”, eu sempre respondia “Tudo”. Sem piscar. A felicidade dispensa reflexão. Só depois comecei a considerar a pergunta. A avaliar os prós e os contras. A me esquivar, a dar respostas vagas, assim como tinha começado a fazer o país todo. As pessoas só respondiam: “Vai indo”. Porque a vida já não podia mais ir bem de verdade depois de tudo o que nos havia acontecido.