Marcio Mafra
20/09/2020 às 19:38
Brasília - DF
Viagem difícil de classificar
Aos vinte e três dias do mês de fevereiro do ano de 2016, desceu no
aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, em um voo proveniente de
Punta Cava, na República Dominicana, um casal de marqueteiros
chamados João Santana e sua esposa Mônica Moura. O distinto
casal foi devidamente recepcionado pela Polícia Federal e, logo a
seguir, reembarcado em um segundo voo, desta feita com destino ao
aeroporto Afonso Pena, junto à capital do Paraná, Curitiba. Ali o
referido casal foi entregue aos responsáveis judiciários pela
operação "Lava Jato". A imprensa deu ampla cobertura aos dois
pousos.
Nós outros, meros observadores, distantes dos fatos no tempo e no
espaço, ficamos indagando como classificar aquele tipo de viagem.
Vejamos um pouco das razões da nossa curiosa dificuldade em
classificar o mencionado evento.
Ao que foi divulgado, o casal estava naquele país distante em pleno
desempenho do seu trabalho habitual: maquiar uma propaganda
eleitoral visando, no caso, a reeleição do mandatário daquela
pequena nação latino-americana.
Tenhamos em vista que a dupla de marqueteiros desfrutava de
conceito auspicioso, uma vez que já conseguira retumbantes vitórias
eleitorais, em especial no Brasil país com mais de cem milhões de
eleitores. Sem dúvida, um currículo excepcional. É claro, a obtenção
de sucessivas vitórias eleitorais credenciava a dupla para novos
feitos.
Façamos um breve retrospecto. O ex-presidente Lula, o homem mais
honesto que o mundo já produziu (na sua própria avaliação) e a
presidente que lhe sucedeu, Dilma Roussef, eleita a seguir devem
considerável parcela dos seus êxitos eleitoreiros ao desempenho de
João Santana e esposa. Por conta dessa realidade, e em virtude da
importância do feito, é natural que a cotação dos dois marqueteiros
estivesse em alta e que eles fossem procurados para desempenhar
o seu ofício em outras terras. E foi o que aconteceu.
No caso específico das campanhas realizadas no Brasil, restou
apenas um pequeno engasgo: não se sabe, ao certo, a procedência
da dinheirama que foi parar nas mãos habilidosas da dupla. Então, a
justiça passou a desvendar o fato. Pois muito bem, o grupo político
que esteve no governo do país por conta do êxito obtido em
sucessivas eleições passadas, ficou em maus lençóis para explicar,
entre outras coisas, a origem da tanta grana gasta no decorrer das
campanhas realizadas.
Assim provocado, o Ministério Público, através de uma vara, sediada
em Curitiba, promoveu uma ação de nome sugestivo - "Lava Jato" -
tomando a si o encargo de esclarecer as coisas e tirar a limpo uma
série de ações que permaneciam um tanto nebulosas.
Fundamentado em inequívocas evidências da prática de
contravenção, o então juiz titular daquela vara promoveu sucessivas
pesquisas nesse escorregadio terreno onde se implantou a
corrupção. Isso, no propósito de arrancar, dos responsáveis mais
diretos pelos desvios de conduta e de muito dinheiro, uma explicação
(ou delação) esclarecedora. A Lava Jato pretendeu, e ainda
pretende, botar o país no rumo de decência administrativa. Tarefa
dificílima, tendo em vista o muito a fazer e o panorama cada vez mais
conturbado que domina o ambiente, permanentemente mutante.
Mas deixemos de lado as conjunturas jurídicas. O nosso propósito é
tão somente esclarecer ou tipificar aquele modelo de viagem. Quanto
a isso, e pesquisando dentro do critério que vimos adotando,
confessamos que estamos diante de um modelo de viagem para o
qual não fixamos, ainda, uma conceituação adequada" Eis porque
aguardamos o surgimento de novas e confiáveis ocorrências que
possam substanciar uma tipificação consistente.
Primeiramente devemos considerar o fato de que o diligente casal se
encontrava em outro país, distante por sinal, exercitando o seu
costumeiro e natural trabalho profissional. De repente, se depara
com a notícia, ou recebe o teor de uma carta precatória, decretando
a sua prisão no Brasil.
Diga-se, a bem da verdade que, sem mais delongas, o casal resolveu
viajar de regresso ao Brasil, talvez até mesmo suspeitando que
poderia dar com os costados nas grades de uma cadeia, assim que
pisasse em solo brasileiro. Mesmo assim, apressou-se a viajar o mais
breve possível. Na azáfama para cumprir a ordem judicial a pressa
do casal foi tamanha que, sem mais explicação, esqueceram ambos
de colocar nas suas malas os seus computadores de trabalho e bem
assim os respectivos aparelhos celulares de sua comunicação
pessoal. Se bem pensado, tais instrumentos não Ihes fariam falta,
tendo em vista que não poderiam usá-Ios atrás das grades. Esse
conjunto de ações é um dos pontos cruciais que torna mais difícil
qualificar a imediata viagem que empreenderam.
Por outro lado, sabe-se que a dupla é formada por gente passada na
casca do alho, um casal calejado e profundo conhecedor dos
meandros que deságuam nos porões oficiais. Então, comporta
conjecturar: eles, especializados em achar subterfúgios de toda
ordem para engazopar milhões e milhões de eleitores, facilmente
encontrariam as palavras certas para conter as investidas de uns
poucos juízes e jovens promotores de justiça. As coisas no Brasil
quase nunca têm sequência lógica. Então, lá com os seus botões
eles talvez tenham feito uma leitura otimista da situação. Enfim, nada
que não fosse possível contornar com uma boa lábia.
Outra variável pode ser levantada: o casal, no pressuposto da
inocência viajou tranquilo, convicto de que tudo não passaria de
lastimável equívoco da autoridade coatora.
Numa terceira avaliação, o casal, consciente de que aquela seria a
primeira suspeita que lhe pesava, tinha como certo safar-se sem
grande desgaste. Apenas mais uma maçada comum nesse tipo de
atividade.
Numa quarta análise, o casal podia se julgar vítima de avaliações
pouco consistentes ou apressadas, caso em que um bom diálogo
seria bastante.
Numa quinta dimensão, a dupla pode ter imaginado ainda que, sendo
eles "marinheiros de longo curso" - como deve ser todo bom
marqueteiro - eles teriam como engendrar uma defesa convincente,
e não esquentariam o lugar.
Numa sexta hipótese, e sem dúvida, não a última, eles entregariam
a causa a uma boa banca de advogados e deixariam a coisa correr
frouxa. (A propósito, advogado de corrupto nunca esteve tão em
alta),
E se ainda comportam outras hipóteses, em forma de delação e de
outras artimanhas legais ou bastardas, todas elas devem ter sido
contempladas com uma fria e curtida avaliação do distinto casal, que
de tolos não têm nada.
o que não cabe é admitir que uma gente que ensina aos seus
clientes como vencer grandes imbróglios, não esteja preparada para
enfrentar qualquer tipo de questionamento.
Por outro lado, de pronto, fica evidente que o fato de subtraírem de
sua bagagem os aparelhos cibernéticos indispensáveis ao seu
trabalho, é significativo. Mesmo tendo em vista que deles não
poderiam fazer uso no hotel sem estrelas que iriam ocupar por algum
tempo.
Contudo, a contraditória e imediata resolução do casal de entregar-
se sem mais delongas protelatórias continua a merecer, da parte
deste observador distante, uma interrogação curiosa.
É evidente que a conceituação de uma turnê de regresso dessa
natureza não é fácil de classificar. Talvez nem se possa catalogá-Ia
como se coercitiva fosse, tendo em vista que, na prática, o casal
antecipou-se a qualquer pedido vexatório de repatriamento.