Marcio Mafra
02/07/2021 às 22:07
Brasília - DF
Certa vez, quando eu tinha nove anos, você me perguntou quem era Deus.
Lembro que estávamos caminhando pela rua, procurando uma sombra para descansar.
Estava quente, um calor que não era insuportável mas que nos incomodava.
Entāo quando encontramos um banco embaixo de uma árvore, você olhou para algumas pombas que ciscavam por ali, naquela praça malcuidada, e me perguntou:
- Pedro, você sabe quem é Deus?
E eu não fazia a mínima ideia do que tinha te feito perguntar uma coisa daquelas para um menino de nove anos.
Lembro que recém havia terminado de ler um livro sobre vampiros, lendas e histórias de terror.
Então, quando você me perguntou quem era Deus, pensei em dizer: não sei.
Acontece que você detestava que eu dissesse não sei, você dizia: filho, nunca podemos saber de tudo, mas, olhe, não responda não sei.
Diga então que precisa pensar, que precisa de tempo.
No entanto, naquele dia, eu não queria pensar.
Estava quente e eu só tinha nove anos.
Mas eu lembrei do meu livro sobre lendas de terror e respondi que achava era um fantasma e morava no céu.
E, quando eu disse isso, você me olhou com certo espanto, e vi seu rosto se iluminar com alegria.
Como se eu tivesse dito a coisa mais importante do mundo.
Talvez hoje eu compreenda por que você ficou comovido com aquela resposta.
Conforme fui crescendo, suas perguntas foram ficando mais complexas.
E confesso que às vezes eu não queria ser profundo.
Eu queria apenas brincar e ser como os outros filhos eram com seus pais.
No entanto, agora eu sei que você estava me preparando.
Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava.
Necessário preservar o avesso, você me disse.
Preservar aquilo que ninguém vê.
Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar rio mundo.
E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende?
Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único.
E é nesse lugar que estão os afetos.
E são esses afetos que nos mantêm vivos.
Lembro que você fazia um grande esforço para ser entendido por mim.
Eu era pequeno e talvez não tenha compreendido bem o que você queria dizer, mas, a julgar pela água nos seus olhos, me pareceu importante.