Marcio Mafra
29/07/2021 às 21:08
Brasília - DF
Após o café, Shmuel demorava-se um pouco para borrifar um pouco de talco de bebê perfumado na barba e no cabelo encaracolado - em seus cachos desgrenhados pareciam surgir cãs prematuras — e descia pela escada em Caracol que levava de sua água-furtada para a cozinha.
Cuidava de não fazer barulho, para não perturbar perturbar Guerhson Wald em seu sono de antes do meio-dia. E mesmo assim, sem qualquer contradição, lançava à sua frente quatro ou cinco tossidelas forçadas, na incansável esperança de com elas fazer com que Atalia talvez se dignasse a sair do quarto em sua honra para vir resplandecer por alguns instantes na cozinha.
Na maioria das vezes ela não estava lá, embora lhe parecesse que suas narinas captavam um tênue aroma de seu perfume de violetas. De novo era atacado de sua tristeza matinal, e dessa vez essa tristeza não se traduzia em alegria pela própria existência da tristeza, mas passava a ser um arranhar que anunciava um ronco de asma, e ele se apressava a inalar duas vezes profundamente o inalador que sempre levava no bolso. Depois abria a geladeira e ficava olhando para dentro durante três ou quatro minutos sem ter a menor noção do que estava buscando.
A cozinha estava sempre arrumada e limpa, a xícara e o prato dela lavados virados de boca para baixo no escorredor, o pão dela embrulhado em papel ñno dentro da caixa dos pães, nem uma só migalha na toalha de encerado; só uma cadeira um pouquinho afastada da mesa e inclinada num pequeno ângulo em relação à parede, como se a tivesse deixado às pressas.
Teria saído de casa? Ou estava mais uma vez fechada, silenciosa, em seu quarto?
Por vezes não conseguia refrear sua curiosidade e se esgueirava da cozinha para o corredor, aguçando o ouvido diante da porta do quarto dela. Nenhum som se ouvia lá dentro, mas após alguns instantes de escuta concentrada lhe parecia ter captado, do outro lado da porta fechada, uma espécie de zumbido ou murmúrio baixo, um murmúrio monocórdio e constante. Ele tentava esboçar na imaginação o que haveria nesse quarto, para o qual nunca fora convidado e cujo interior jamais conseguira vislumbrar nem de passagem, embora já tivesse ficado algumas vezes de emboscada no corredor, esperando a porta se abrir.
Após um ou dois minutos já não tinha como saber se o murmúrio ou zumbido vinha realmente da porta, ou ocorria, todo ele, apenas em sua cabeça. Ficou quase tentado a experimentar silenciosamente a maçaneta. Mas conteve-se e voltou para a cozinha, as narinas palpitando como as de um cachorrinho em busca de um eco longínquo de algum farejar. Tornou a abrir a geladeira, e dessa vez achou um pepino, que comeu com casca e tudo.
Ficou cerca de dez minutos à mesa da cozinha olhando as manchetes do jornal Duvar: o novo governo tomará posse dentro de dois ou três dias. Sua composição ainda não estava clara. O líder da oposição, Begin, declarou que não havia solução para a questão dos refugiados dentro das fronteiras do Estado de Israel, mas que há para ela uma solução positiva e verdadeira em Eretz Israel, quando todo o país voltar a ficar unido. E o prefeito da cidade de Safed escapara da morte, quando seu carro despencou num abismo à margem da estrada. São esperadas mais chuvas em todo o país, e em ]erusalém pode nevar um pouco.